Metamorfose Jurídica
Grupo de Pesquisa
Lei de resíduos sólidos não foi cumprida. E agora?
Tenho acompanhado atentamente os muitos comentários e análises de variados especialistas a respeito dos desdobramentos do não cumprimento do prazo para que os prefeitos de todas as cidades brasileiras dessem um ponto final aos seus lixões. Nos dias posteriores ao prazo final para o cumprimento da Lei Nacional de Resíduos Sólidos, 2 de agosto, foram divulgados relatórios, realizados eventos e elaboradas inúmeras teorias para justificar o chocante fato de ainda existirem no Brasil cerca de 3.500 lixões ativos em todas as regiões brasileiras, número cujo significado é o descumprimento da lei por 60,7% dos municípios.
O resultado a demonstrar o fragoroso descumprimento da lei pela maioria só surpreendeu os ingênuos. Era notória a falta de movimento e de ações efetivas de nossas autoridades municipais.
O problema está distribuído por todo o País, quase sem exceções. Só no Nordeste a existência de lixões ainda é uma realidade em mais de 1.500 municípios. A situação também é grave entre algumas capitais como Porto Velho, Belém e Brasília. O Distrito Federal representa um caso vergonhoso, pois tem o chamado Lixão da Estrutural, o maior da América Latina, com uma extensão correspondente a 170 campos de futebol e altura equivalente a 50 metros de lixo.
A Lei 12.305, denominada de Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos, entrou em vigor em 3 de agosto de 2010, concedendo prazo até agosto de 2012 para os municípios apresentarem seus planos de gestão integrada de resíduos sólidos (art. 55) e até o último dia 2 de agosto de 2014 para o encerramento dos lixões (art. 54). A primeira data relativa à obrigatoriedade das prefeituras para a entrega dos planos já havia sido amplamente descumprida, portanto, difícil seria imaginar que a segunda seria contemplada com mais tranquilidade.
E um fato ainda mais interessante e curioso de toda essa discussão é que não foi a LPNRS a determinar o fim dos lixões em todo o país. A disposição ambientalmente adequada de rejeitos em aterros sanitários (locais capazes de evitar contaminações, danos à saúde humana e maiores impactos ambientais) já estava prevista em uma antiga portaria de número 053/1979 do Ministério do Interior. Ela condenava o descarte em lixões e, desde 1981, a poluição ambiental passou a ser considerada crime. Anos mais tarde, a Lei 9.605 de 1998 acrescentou a necessidade de se obter o licenciamento ambiental para o descarte de materiais, coisa que, obviamente, nenhum lixão teria condições de conseguir.
Registros históricos à parte, entramos no mês de agosto com uma massa de prefeitos de todos os cantos do Brasil rotulados como “foras da lei”. Pela letra fria do texto da LPNRS esses dirigentes municipais que ainda despejam os resíduos de suas cidades em lixões podem ser presos, perder o mandato e pagar uma multa de até 50 milhões de reais dependendo dos variados graus de descumprimento da lei. O município também poderá deixar de receber repasses de verbas do governo federal, o que seria fatal para o orçamento de uma quantidade enorme de cidades que dependem desse dinheiro para sobreviver.
E agora? O que fazer?
Diante desse quadro de cores fortes e perturbadoras, as opções que estão sendo colocadas de maneira mais incisiva vão da punição imediata até a extensão do prazo para o cumprimento da lei. A ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, foi uma das primeiras a se manifestar em nome do governo federal, contra a prorrogação do prazo. No sentido contrário, uma emenda ao projeto de lei apresentado pelo deputado federal Manoel Junior (PMDB-PB) joga para mais 8 anos o cumprimento da lei. Importante lembrar que em ano eleitoral pouca coisa irá mudar se tivermos que esperar ações do governo ou do Congresso Nacional.
Talvez, antes de definir os novos passos de implementação da lei e diante dessa nova realidade, melhor seja conhecer com mais detalhes o que se passou nesse período desde a aprovação da lei no Congresso Nacional em 2010. Será mesmo possível classificar todos esses milhares de prefeitos como irresponsáveis e pouco preocupados com a saúde e o futuro de suas populações?
Bem, não foi isso o que a senadora Vanessa Grazziotin do (PCdoB-AM) apresentou em seu relatório na Subcomissão Temporária de Resíduos Sólidos no Senado Federal. Após reunir informações de seis audiências públicas relacionadas ao tema, ela constatou que existem inúmeros fatores que levaram ao descumprimento dos prazos, entre os quais, ela cita o caso do seu estado. No Amazonas, afirma Grazziotin, todos os municípios apresentaram o planejamento para a desativação dos lixões, mas não puderam executar por falta de recursos e acesso a verba federal. Nessa situação seria possível dividir um pouco da responsabilidade entre o Governo Federal e os municípios.
A própria Confederação Nacional dos Municípios em diversos encontros, realizados nos últimos anos, revelava a preocupação de seus associados quanto às dificuldades que encontravam para elaborar seus planos e a falta de apoio tanto em pessoal técnico qualificado como em garantia de verbas para coloca-los em prática.
Avanços apesar de tudo
Mas todo esse cenário não é composto apenas de más notícias. Um estudo da Associação Brasileira de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) concluiu que, atualmente, 40% de todo o lixo produzido no Brasil ainda tem destinação inadequada. Só que esses números são bem mais interessantes que os 88% registrados em 1989, quando os nossos resíduos produzidos a cada dia tinham como destino lixões a céu aberto sem qualquer cuidado ou tratamento. Isso graças a chegada da Lei Nacional de Resíduos Sólidos mesmo com todos os problemas de cumprimento apresentados até aqui.
Também podemos somar outro grande benefício que são os investimentos do poder público no apoio às cooperativas de catadores. Hoje o Brasil possui, segundo a Abrelpe, cerca de 30 mil profissionais cooperados para um universo de 800 mil catadores que vivem dessa atividade. Pouco claro, mas que eram menos ainda num passado não tão distante.
É óbvio que os números vinculados aos avanços podem ser vistos como tímidos e insuficientes. Por outro lado, fechar os olhos para o que foi conseguido e apenas lamentar e criticar pouco irá contribuir para uma mudança real nesse estado de coisas. Entre passar a mão na cabeça dos prefeitos ou puni-los com o rigor e a espada da lei, fico com um meio termo que busque efetivamente o caminho de uma solução positiva e duradoura em prol da saúde das pessoas e do meio ambiente.
Fonte: Carta Capital
O Canal da Nicarágua e o risco de um novo imperialismo
Embora ainda resistido por ambientalistas e cientistas no mundo inteiro, além de camponeses e operadores turísticos em seu próprio país, o Canal da Nicarágua está saindo do papel.
Graças ao poder dos mais de 40 bilhões de dólares investidos pela empresa chinesa HKND (Hong Kong Nicaragua Development, do megaespeculador chinês Wang Jing, criada especialmente para construir e administrar a obra), os trabalhos já começaram, ainda que em ritmo lento, devido aos protestos e obstáculos judiciais que ainda enfrenta.
O Canal da Nicarágua, segundo o projeto anunciado em julho de 2014, terá 278 quilômetros desde o Mar do Caribe, cruzando boa parte do Rio San Juan, até chegar ao gigantesco Lago Cocibolca, o segundo maior da América Latina – atrás somente do Titicaca, entre a Bolívia e o Peru – e um dos mais conhecidos cartões postais nicaraguenses.
Os trabalhos necessários para viabilizar o canal incluem uma série de desvios que tornarão o San Juan navegável para embarcações de grande porte, incluindo trechos entre montanhas e uma fuga de regiões do rio mais próximas da fronteira com a Costa Rica – para evitar problemas diplomáticos – além das obras no Cocibolca, sendo a principal delas a conexão, através do Istmo de Rivas, que ligará o lago com a costa do Pacífico. Também serão construídos portos de águas profundas, próximos aos dois extremos do canal, nas cidades de Punta Gorda (costa leste) e Brito (costa oeste).
Será o investimento chinês mais importante na América Latina nesta década, recebendo quase um quinto cerca de 250 bilhões de dólares que o gigante asiático tem previsto destinar ao continente nos próximos dez anos, e colocando a Nicarágua no mesmo patamar dos principais parceiros comerciais da China na região, como Venezuela, Brasil e Argentina.
Embora a iniciativa, no caso do canal, seja de uma empresa privada, se presume, que o próprio governo chinês esteja participando, pelo fato de ser uma entidade criada especialmente para a obra, pela verba bilionária destinada ao projeto e porque coincide com uma política do país comunista em se aproximar da América Latina, a partir de acordos com quase todos os países da região, incluindo vínculos criados com organismos regionais, como a CELAC (Comunidade de Estados Latino Americanos e Caribenhos, que realizou, em janeiro deste ano, um fórum especial em conjunto com a China, em Santiago do Chile).
O ponto mais complexo, mas também previsível, desse verdadeiro negócio da China é a concessão da operação e dos direitos econômicos sobre o futuro canal à empresa HKND por cinquenta anos, com direito a ampliação por outro meio século, que só não será exercida em caso de desistência oriental, concedendo um suposto, e ainda assim condicionado, direito a veto para os centro-americanos.
Mas existem outros elementos desfavoráveis, e que ferem princípios constitucionais, incluídos na carta magna por iniciativa do próprio presidente atual do país, o sandinista Daniel Ortega, como o fim da obrigatoriedade para as empresas chinesas de usar mão de obra local ou buscar apoio técnico e logístico em parceiros nicaraguenses, além da ampla isenção de impostos, apresentada como condição para viabilizar o investimento.
A simbologia deste caso deveria ressuscitar velhos temores na região, mas eles estão escondidos pela esperança de se vencer velhos inimigos. Um canal interoceânico na América Central, com dinheiro estrangeiro implicando em perda da autonomia econômica sobre parte de um território, é história conhecida. Aconteceu no Panamá, com os Estados Unidos exercendo controle total sobre as atividades na Zona do Canal durante 96 anos, considerando o tempo de construção e o período em que se manteve dono da região, até que o Tratado Torrijos-Carter estabeleceu o último dia de 1999 como data para a entrega da soberania do canal, definitivamente, ao governo panamenho.
Para o resto da região, o Panamá era um símbolo, mas não uma exceção. Os demais países também foram reféns de acordos e investimentos realizados pelos Estados Unidos durante os Séculos XIX e XX, e ainda hoje, os governos da região, especialmente os de visão mais progressista, tentam se desvincular dessa dependência do capital estadunidense, e de seus interesses nas respetivas políticas internas.
Não é possível fazê-lo totalmente, mas em tempos de reordenamento da geopolítica mundial, a China surge como um oásis, com a ilusão de uma parceria que trará menos dependência e uma relação menos sujeita a intervencionismos. A mesma esperança tinham os que, há cem anos ou mais, viam nos Estados Unidos uma alternativa ao imperialismo britânico ou a compromissos com a Espanha que permaneceram pendentes depois dos processos independentistas.
O tempo dirá se o Canal da Nicarágua será o símbolo da influência da China na região, e como será essa influência, se mais daninha ou mais amistosa que a dos Estados Unidos e das potências que impuseram seus interesses à América Latina nos séculos anteriores.
Ainda não está provado se as experiências colonizadoras calejaram os líderes latinos, principalmente os progressistas. Pode-se entender uma direita resignada ou até ansiosa em cooperar com os Estados Unidos, mas a esquerda, que sempre criticou essa situação, deveria ser a mais preparada para evitar relações que, no futuro, possam ser desfavoráveis, mesmo que venham de um país supostamente comunista – condição bastante questionável na prática.
Os obstáculos ao Canal
Os protestos contra o canal não são poucos, mas carecem de repercussão internacional. As comunidades rurais do sul do país estão preocupadas com as transformações no leito do Rio San Juan e em como serão afetadas. O governo diz que os manifestantes são grandes latifundiários, e que não têm do que reclamar, já que a empresa chinesa se comprometeu a indenizar todas as propriedades que forem removidas. Contudo, também existem muitas famílias de pequenos camponeses, provavelmente a maioria dos que reclamam das obras, que têm no San Juan o seu meio de subsistência. Para eles, as indenizações serão ajuda de curto prazo, antes que se esgote sua principal fonte de renda.
Os ambientalistas também protestam contra os desvios do Rio San Juan, mas concentram suas energias nos efeitos que o canal levará ao Lago Cocibolca, um problema muito mais complexo do ponto de vista ecológico, já que, antes mesmo de se iniciar essa parte da obra, a destruição do ecossistema local já atingiu níveis preocupantes. Já são décadas em que o uso de suas águas para o despejo de lixo, esgoto e resíduos químicos vem acumulando efeitos trágicos.
As 50 mil toneladas diárias de despejos são como uma overdose de poluição a uma das mais belas paisagens do mundo. Um espelho d´água de 8 mil quilômetros quadrados, repleto de pequenas ilhas vulcânicas – uma delas, a Omatela, é a maior ilha lacustre do mundo, e possui dois vulcões em seu território – e que já sente os efeitos da devastação em seu ecossistema marinho, cujas mais de trinta espécies aquáticas começam a sofrer perigo de extinção – o tubarão-touro, única espécie desse animal adaptada à água doce, só não está considerado extinto porque pode ser encontrado em habitats semelhantes de outros continentes, mas já não se vê mais no Cocibolca.
O governo nicaraguense nega tudo, baseado em questionáveis estudos de impacto ambiental, cujos conteúdos nunca foram publicados.
Contexto histórico
O Canal da Nicarágua é um projeto de mais de dois séculos. Ainda nos tempos coloniais, muitos piratas e aventureiros tentaram cruzar a América Central, entre o Mar do Caribe e o Oceano Pacífico, e alguns conseguiram, em pequenas embarcações, através de cruzadas que não foram exclusivamente por via fluvial.
Ainda assim, a maioria das iniciativas surgiram a partir do Século XIX, quando os países da América Central, recém independentes mas com os cofres vazios, viam na criação de uma rota de comércio interoceânica uma aposta milionária, mas careciam de recursos para realizá-la. A Nicarágua, e não o Panamá (que, na época das primeiras tentativas a respeito, era uma província pertencente à República de Nova Granada, atual Colômbia), sempre foi a primeira opção, tanto para os estadunidenses quanto para os europeus que empreenderam a corrida pelos canais.
No começo do século passado, os Estados Unidos eram a única potência capaz realizar o projeto. Promoveram uma disputa entre Nicarágua e Panamá, vencida em 1902 pelo país mais ao sul. Tão forte era a influência norte-americana sobre as duas nações que, mesmo depois de já ter construído o Canal do Panamá, fez os nicaraguenses aceitarem um acordo para travar qualquer projeto de canal enquanto os próprios Estados Unidos não exercessem sua prioridade em fazê-lo – o Tratado Chamorro-Bryan era, na prática, um documento para impedir que outro país o construísse, e se manteve vigente entre os anos de 1916 e 1970.
Fonte: www.cartacapital.com.br
A rara arte de Galeanea
O mundo ultimamente tornou-se estranho e desagradável. E isso parece materializado com o anúncio da morte do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015). Foi de câncer, essa doença que nunca respeito mando de campo. Para nós, o impacto foi tão forte comparável à perda de um amigo ou um parente próximo. De repente o dia ficou pequenino, menos poético, mais conservador, menos delirante, mais injusto. E o transbordar da paixão que tanto Galeano frisava? Parece que no dia de sua partida, ele também fez as malas e sumiu do mundo feito um passarinho triste, desterrado de seu ninho. Tudo ficou acinzentado, normal demais, terrível demais.
Não temos a intenção de fazer um balanço de sua obra e a reconstrução de sua trajetória. Outras pessoas mais capazes certamente farão isso com mais precisão e rigor. Gostaríamos apenas de realizar modestamente um ligeiro depoimento sobre a relação amorosa que tivemos com os livros de Eduardo Galeano. Afinal, o exercício de recordar, do latim re-cordis, é tornar a passar pelo coração, como está na epígrafe de um de seus livros, O livro dos abraços.
Ler As veias abertas da América Latina durante a adolescência foi decisivo para tudo o que vem depois para estes garotos franzinos que, assim como Galeano, sonhavam desde pequenos em ser jogadores de futebol. Era a história da América Latina, a região das veias abertas, que era contada nesse livro. Mas era escrita de maneira peculiar, inimitável, como a história de um pirata ou uma canção de amor: delicada e cortante, como a vida. A narrativa parecia constituída de diversos gêneros: um coquetel explosivo de análise política e histórica, jornalismo, literatura e documentos. Um gol de placa.
Era um pouco demais para ele ser aplaudido pelos campos aprisionados do saber especializado ou pelo fanatismo político acorrentado pelas doutrinas asfixiantes. Aos primeiros, defensores de uma linguagem hermética, deu a seguinte resposta: “suspeito que o fastio serve para dizer a ordem estabelecida: confirma que o conhecimento é uma privilégio das elites”. Aos segundos disparou: “talvez essa literatura de paróquia esteja tão longe da revolução como a pornografia está longe do erotismo”.
A sensação de cada página, cada parágrafo, cada frase, cada palavra era deliciosamente desesperadora. Era como se descobríssemos que havia uma janela nunca aberta, e uma vez destravada, surgia uma paisagem e horizonte infinitos. Parecia que ele tinha nos bolsos as melhores palavras para se expressar com o mundo: denunciava o que doía e compartilhava o que dava alegria.
Fato é que um novo mundo se abria. Um continente se apresentava naquelas páginas com mil histórias e memórias, com mil dores e esperanças, com mil momentos e pessoas, aquelas entregues ao esquecimento de nosso continente. Era o ponto de vista dos vencidos, dos marginalizados, dos párias e tudo indicava que tinham muito que dizer. Galeano driblou a história dos vencedores. Um silêncio parecido com a estupidez tinha sido quebrado. Desde então, nunca mais fechamos essa janela.
Tempos depois fomos conhecendo outros livros de sua autoria, que carregavam a mesma verve narrativa: uma estranha acidez misturada com ternura. Parecia mais radical a sua linguagem. Ele optou em relatar a memória social latino-americana com histórias em pedacinhos. “Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração. Sábio doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade”.
A literatura passou a ser um caldo mais grosso no seu coquetel, mas sem perder o caráter provocador, radical e subversivo à ordem estabelecida. Contudo, ao contrário do que os mais apressados dizem, Galeano não renegou o conteúdo político d’As veias abertas, apenas seguiu o conselho dos sábios pescadores colombianos para uma forma que expressasse mais a convergência entre prosa e conto. Ele temia as formas de burocratização das palavras, do amor, da política, do futebol, muito embora As veiasnão sejam um livro burocrático.
Como um mendigo que implora apenas por gesto de rebeldia na sociedade contemporânea, prestou toda solidariedade aos movimentos que sonham e anunciam outra realidade possível. Galeano despertou o gatilho da imaginação e a vontade da transformação em muitos que o leram. Ele possuía uma doença rara: sofria de obsessão pela memória da América Latina. Assim como Walter Benjamin nas suas Teses sobre o conceito de história apostava que “o dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.
Uma promissora hipótese para avançarmos na caracterização da obra do escritor uruguaio é o conceito de “romantismo revolucionário”, definido pelo sociólogo Michael Löwy. Segundo o sociólogo franco-brasileiro o romantismo é mais do uma escola literária, mas uma estrutura de sensibilidade que começa no século XVIII e perdura até os dias de hoje. Sua manifestação ecoa em todos os campos do saber: artes, literatura, política, sociologia. Trata-se de um grito “contra o advento da moderna civilização capitalista, uma revolta contra a irrupção da sociedade industrial/burguês fundamentada na racionalidade burocrática, na reificação mercantil, na quantificação da vida social e uma manifestação do ‘desencantamento do mundo’”. Ela pode assumir diversas tonalidades: regressivas e reacionárias, mas também utópicas e revolucionárias. No caso da obra de Galeano, parece mais adequado o romantismo revolucionário, já que seu legado pode dar nome à cultura política mais geral que costurou projetos e utopias de diferentes matrizes durante a história, ancorada numa visão de ruptura autêntica com a modernidade capitalista.
E agora, o que resta sem Galeano? Galeanar, pois. Continuar perseguindo obsessivamente o encontro com novas utopias. Galeanar as pequenas construções do cotidiano, galeanar os laços afetivos construídos ternamente com pessoas por uma mágica chamada de afinidade. Construir apaixonadamente caminhos abertos à esperança. Mas também indignar-se com um mundo que prometeu diuturnamente paz e justiça social e em nome da ganância e do livre mercado entregou-nos um mundo pior do que havia prometido.
É por essas e outras que, infelizmente, os livros de Galeano são atuais. Torcemos para que seu legado não se transforme em um mausoléu sagrado, mas que sua crítica profana à modernidade capitalista, sem deuses nem fetiches, se estenda as novas gerações como uma leitura estratégica imprescindível para enfrentar os novos demônios do século XXI. Vencidos da América Latina, galeanemos o mundo! Esta é a crônica do abraço. Do abraço à Eduardo Galeano.
Fonte: www.cartacapital.com.br
A revolta dos sargentos segundo Melquisedec
Em 25 de agosto de 1961 a Base Aérea de Canoas (BACO) entrou em regime de prontidão. Em 26 de agosto do mesmo ano a tropa da BACO (suboficiais, sargentos, cabos e soldados) tinha pouco conhecimento dos acontecimentos, mas já havia o boato de que os Ministros Militares estavam se opondo à posse do vice-presidente João Goulart e que o governador Leonel Brizola havia iniciado um movimento pela posse de Jango, denunciando o golpe militar. Era o Movimento Pela Legalidade. No dia seguinte, 27 de agosto, houve um alarme de que Brizola iria tentar tomar a Base Aérea, usando uma tropa vinda de Nonoai e os ferroviários, com apoio do 3º Exército. Toda a Base entrou em forte preparativo para a defesa: todo o pessoal foi armado e municiado; o 1º/14º Grupo de Aviação foi preparado – 16 aviões (quatro esquadrilhas) Gloster Meteor F8, armados e municiados com metralhadoras, canhões e bombas. A BACO tinha um Douglas C-47 para 28 passageiros, do qual eu era o mecânico de voo encarregado. Outros quatro C-47 chegaram à Base para transporte de pessoal e material. Na noite do dia 27 alguém deixou disparar uma arma – um disparo acidental. Em 28 de agosto, pela manhã, devido ao disparo acidental, todos receberam ordens de guardar suas armas; nós, sargentos, guardamos as armas em nossos armários. Na Esquadrilha de Adestramento, onde eu trabalhava, o comandante, Capitão Silva Maia, dividiu o pessoal em grupos para irem a suas casas dar notícias e apoio aos familiares. Fui em casa, na Rua Hoffmann, 167, em Porto Alegre. Chegando ao apartamento, minha esposa perguntou “é mesmo que a Base vai atacar o Palácio?”, ao que respondi “não sei nada a respeito disso, que história é essa?”. Ela me disse que o governador estava dizendo aquilo no rádio. Na verdade, estava sendo transmitida, repetidamente, a notícia do ataque ao Palácio Piratini, com Brizola fazendo um dramático pronunciamento, através do qual convocava o povo para ir à Praça da Matriz. Pedi que minha esposa desligasse o rádio, que aquilo tudo era bobagem, afinal estava vindo da Base, onde nada havia! Fui ao bar que ficava ao lado de nosso prédio. Quando cheguei à porta, vi que lá estava cheio de homens escutando rádio. Quando me viram fardado, abriram um corredor. Fui até o balcão no fundo do bar e, quando virei para sair, fui impedido pelo grupo que, de maneira ameaçadora, perguntava se nós íamos atacar o Palácio. Sentindo-me ameaçado, respondi com veemência que aquilo era um absurdo, indagando os frequentadores se pensavam que a Base Aérea era um bando de loucos, irresponsáveis. Disse que o governador estava puxando brasa para o seu assado, que tinha acabado de vir da Base, onde nada havia nesse sentido. Forcei passagem e saí xingando, “esse Brizola, incitando o povo contra a Aeronáutica, que abuso!”. Voltei para a Base Aérea. Lá chegando, encontrei o pessoal em forma, em frente ao prédio do comando, enquanto o Comandante, Cel. Honório Pinto Magalhães, falava. Entrei em forma e fiquei sabendo, por colegas, que havia um alarme de que a Base havia recebido ordens para atacar Porto Alegre, o Palácio e calar o Brizola. O Cel. Honório estava em uma parte mais alta, caminhando de um lado para o outro, com um papel cor-de-rosa na mão (creio que era a ordem recebida). Dizia que o Brigadeiro não ia cumprir a ordem, nem ele. Eu estava incrédulo, não me contive e perguntei ao Cel. qual era a posição da 5ª Zona no conflito: se estava do lado dos Ministros, ou do lado do governador – já apoiado pelo 3º Exército (General Machado Lopes) – ou, ainda, se ficaria neutra. A resposta do Coronel foi que a 5ª Zona Aérea continuava obedecendo à cadeia de comando.Não entendi aquilo, era uma incoerência. Como poderia obedecer à cadeia de comando e não cumprir a ordem? O Cel. dispensou a tropa; saí com alguns colegas rumo à Esquadrilha de Adestramento, que ficava ao lado do hangar do 1º/14º GAV. Passando em frente ao hangar – porta sul – encontramos um grupo de sargentos que observava o seu interior, onde o pessoal subalterno (suboficiais, sargentos, cabos e soldados) encontrava-se em forma, desarmado, cercado pelos oficiais, estes todos armados, enquanto o comandante do Esquadrão (1º/14º GAV) falava ameaçadoramente, tentando convencer a tropa a largar os aviões para o céu e embarcar nos aviões C-47, rumo a São Paulo. O pessoal se recusava a obedecer. O clima estava muito tenso. Rapidamente, resolvemos nos armar e voltar para equilibrar o jogo. Voltamos e paramos em frente à porta sul novamente, agora todos armados. O Major Peixoto veio e ordenou que nos retirássemos do local; como não obedecemos, Peixoto foi ao hangar e voltou com o Major Cassiano, que também mandou que nos retirássemos: que fôssemos para nossas unidades! Não obedecemos. Fui até a Esquadrilha, que ficava ao lado. Quando voltei para o hangar, vi o Brigadeiro conversando com um grupo de oficiais em frente ao local. Fiquei aliviado. Pensei, “bem, agora o Brigadeiro bota ordem nesta confusão”. O Brigadeiro se retirou e o Major Cassiano dispensou o pessoal do Esquadrão. O pessoal do Esquadrão se reuniu com o pessoal das outras unidades e foi resolvido neutralizar o Esquadrão e a própria Base Aérea, da seguinte forma:
a. Todos foram em busca das armas; nesse particular, o Suboficial Tomazoli foi incansável.
b. O pessoal do armamento neutralizou (deu pane) os sistemas bélicos dos aviões.
c. Os mecânicos esvaziaram um pouco os pneus.
d. Foram colocados obstáculos na pista de decolagem, a fim de neutralizá-la. Para tal, creio que foram usados os caminhões do Corpo de Bombeiros da Base.
e. Os Sargentos da Cia. de Guardas informaram os soldados do que se passava. Os soldados se uniram conosco, foram armados e ficaram sob o comando dos seus graduados.
Do lado oeste do hangar do Esquadrão e dos alojamentos da Esquadrilha de Adestramento há uma mata de eucaliptos. Em frente ao hangar, à Esquadrilha e à mata fica a pista de estacionamento, onde estavam todos os aviões: dezesseis Gloster Meteor F8, alguns NAs, alguns Douglas C-45 e cinco Douglas C-47. Instalamos nossa tropa revoltosa na mata de eucaliptos e lá ficamos de prontidão. Ninguém poderia se aproximar dos aviões sem que víssemos. Os oficiais tomaram posição no hangar do Esquadrão. Ao anoitecer, o Sgto. Crispim e o Sgto. Simões Pires foram caminhando na pista de estacionamento, em frente aos aviões, quando foram surpreendidos, na frente do hangar, por alguns oficiais que os dominaram. Os oficiais gritavam para nos rendermos, enquanto o Crispim gritava “deixem nos matar, mas não deixem decolar!”. O suboficial Leomar e eu avançamos dos eucaliptos, agachados atrás de uma cerca-viva, e nos aproximamos da cena. Então gritei, “larguem os sargentos e abandonem a pista ou mandamos bala!” – nós não pretendíamos atirar, era só um blefe para assustar os oficiais. Mas para nossa surpresa, um grupo de sargentos e soldados havia nos acompanhado, e estava atrás de nós. Os integrantes desse grupo manejaram suas armas (creio que umas doze armas foram manejadas), e a estralada dos ferrolhos retumbou na mata, fazendo parecer que muitas armas haviam sido manejadas. Até nós nos assustamos! O Suboficial Leomar agiu rápido, mandando que não atirassem, e que desarmassem as armas. Os oficiais, que também estavam blefando – não pretendiam matar ninguém –, largaram os sargentos e voltaram para o hangar. A essas alturas, julgando que a situação havia ficado muito perigosa, os suboficiais e sargentos resolveram mandar um grupo para falar com o governador e com o General Machado Lopes, pedindo que oficiais do Exército assumissem o controle da Base, evitando um possível confronto entre os oficiais e a tropa. O grupo escolhido foi: Suboficial Moacyr Paluskeivski; Sargentos Álvaro Moreira de Oliveira Filho, Ney de Moura Calixto (primo do governador) e Golbery Dias (sobrinho do General Golbery). Fiquei sabendo que, após o grupo de suboficiais e sargentos ter sido recebido pelo General Machado Lopes e o problema devidamente debatido, o General resolveu mandar a Tropa de Quaraí, que estava acantonada no Parque Farroupilha para o desfile de 7 de Setembro, à Base Aérea, para dar apoio, pedindo ao grupo que apontasse um oficial para assumir o comando da Base com o apoio do Comandante da Tropa do Exército, ao que o grupo sugeriu o nome do Major Mário Oliveira (da Aeronáutica), que foi aceito pelo General. No dia 29 de agosto, por volta das quatro horas da manhã, chegou à Base a Tropa do Exército, sob o comando do Major do Exército Léo Etchegoyen, mais o Capitão Canavó e dois aspirantes a Oficial.Toda a Tropa da Base entrou em forma em frente ao alojamento da Cia. de Guarda e ali recebeu o Major Etchegoyen. O Sub Felipe, por ser o militar mais antigo da Base, conversou com o Major. Depois de ouvir Felipe, o Major nos aconselhou que nos desarmássemos, para diminuir a tensão existente. Disse que ele, junto com a Tropa do Exército, controlaria a situação. Concordamos, uma vez que o Major estava ali representando o General Machado Lopes, a essa altura o Comandante Militar da Legalidade. O Major Etchegoyen foi para o prédio do Comando, onde estavam os oficiais. A Tropa do Exército entrou e ocupou um campo em frente ao prédio do Comando, comandados pelo Capitão Canavó. A Tropa da Base guardou as armas. Como já eram quase 8 horas da manhã, todos foram para o rancho tomar o café da manhã. Após o café, voltamos para os alojamentos, no centro da Base, próximos ao prédio do Comando. Recebemos ordens do Major Mário Oliveira para entrarmos em forma em frente ao prédio do Comando. Após entrarmos em forma (éramos cerca de 250 sargentos), constatamos que a Tropa do Exército, às nossas costas, havia estendido linha de combate, com metralhadoras. Naquele momento, ficamos sem entender nada; julgamos que o 3º Exército havia passado para o lado dos Ministros Militares. Nada podia ser feito: nosso protesto já estava mais que lançado. Ficamos quietos. Os oficiais, em bom número, apareceram. Foi dito que aqueles que não haviam participado da revolta poderiam sair da formação. Fiquei preocupado, temendo que muitos não aguentassem a pressão. Porém, a atitude da nossa Tropa me encheu de orgulho, apenas uns cinco saíram de forma, talvez porque realmente não tivessem participado, afinal tenho certeza de que aqueles que saíram eram homens valentes. Os oficiais circularam armados entre os sargentos e os suboficiais, tentando amedronta-los. Todavia, se deram mal – a Tropa, mesmo sob ameaça de metralhadoras, sustentou a posição tomada a favor da Legalidade e da não agressão a Porto Alegre. A Tropa ficou em forma por várias horas, enquanto os oficiais, auxiliados por cabos, soldados e talvez pelos próprios sargentos que haviam saído da formação, retiraram as bombas dos aviões e prepararam as aeronaves para decolar. Os dezesseis aviões Gloster Meteor F8 decolaram, subiram ao céu, e de lá, um a um, mergulharam e passaram num voo rasante por sobre a cabeça da Tropa em forma. Uma verdadeira afronta, uma agressão tamanha, mas a Tropa permaneceu firme. Mais uma vez me orgulhei dos colegas, ao passo que os oficiais, amparados nesse ato de traição do Major Léo Etchegoyen, voaram para São Paulo, levando o 1º/14º GAV. Após a decolagem dos aviões, fomos conduzidos presos para os alojamentos da Companhia de Guarda da Base, escoltados pela Tropa do Exército. No dia 30 de agosto permanecemos presos. Ficamos sabendo que um Coronel do Exército veio à Base e levou embora, em sua companhia, o Major Etchegoyen. O Suboficial Arnaldo Francisco Renz, do Q.G. da 5ª Zona Aérea, veio à Base e tomou conhecimento dos fatos. Voltou para o Q.G., informou aos suboficiais e sargentos o que se passava, ao que decidiram tomar o Q.G. Uma vez tomado o Quartel General, os oficiais e o próprio Brigadeiro Comandante da 5ª Zona Aérea, João Aureliano Passos, debandaram para o Rio de Janeiro e para São Paulo. O Cel. Alfeu Monteiro assumiu o comando da 5ª Zona Aérea. Foi à Base e, após conversar com o Major Mário Oliveira, que estava no comando, soltaram os suboficiais e os sargentos. A Tropa do Exército deixou a Base, e desta maneira o Major Mário, em conjunto com a Tropa da Base, assumiu total controle da situação. No dia primeiro de setembro, nova tensão tomou conta da Base. O Tenente Avelino Yost ficou de Oficial de Dia, e eu estava escalado como Mecânico de Dia. Durante o dia ficamos sabendo que o Corpo de Paraquedistas tinha recebido ordens de tomar a BACO. À tardinha, o Major Mário Oliveira reuniu a Tropa e comunicou o possível ataque dos Paraquedistas, que deveria acontecer ao amanhecer. Ele nos disse que a ordem era para defender a Base a qualquer preço. A Tropa foi armada e municiada, sendo, em seguida, distribuída por setores de defesa. Passamos uma noite extremamente tensa, mas graças ao bom Deus o Corpo de Paraquedistas não veio. O vice-presidente João Goulart regressou ao Brasil. Houve um acordo entre as forças em conflito, e no dia 7 de setembro Jango assumiu a Presidência da República e a paz voltou a reinar, ao menos provisoriamente. Tudo parecia ter voltado ao normal, mas as perseguições começaram. Os oficiais que haviam ido para o Rio e para São Paulo impuseram a condição de que somente regressariam se os 7suboficiais e sargentos que tinham sido os cabeças da rebelião fossem retirados da Base. Esses “cabeças” revoltosos foram nomeados pelos oficiais: era um grupo de quatorze, posteriormente chamado de “Grupo 14 Bis”. Dentre eles estavam: Suboficiais Felipe e Tomazzoli; Sargentos Álvaro, Fernando Azor, Melquisedec, Simões Pires, Klein, Alvim, Crispim, Silvio Palma e Arnaldo, além de dois Cabos e um Soldado, cujos nomes não me recordo. O grupo foi transferido para o Destacamento de Santa Maria – RS. Apenas o Suboficial Felipe ficou no Quartel General da 5ª Zona Aérea, em consideração à sua idade.
Porto Alegre, 12 de agosto de 2011
Melquisedec A.L. Medeiros – Capitão Reformado da Aeronáutica
Nota: era sargento da Aeronáutica, servindo na BACO, em 1961 e foi caçado por Ato Institucional em 1964.
Fonte: www.correiodopovo.com.br
AS “ASSOCIAÇÕES-EMPRESA” E AS “EMPRESAS-ASSOCIAÇÃO”... NO PARTICULAR DOMÍNIO DA “TUTELA” DA POSIÇÃO DO CONSUMIDOR.
1. A recusa do “modelo” de “associações-empresa” e das “empresas-associação” porque... desvirtuante!
A Europa, num embuste de proscrever, entendeu desenhar um modelo assente numa filosofia capitalista e em uma estrutura empresarial transnacional – a CONSEUR, S.A. (que evoluiu para EUROCONSUMERS, S.A., numa adaptação ao inglês, tão em voga ) -, sediada no Luxemburgo (e que opera da forma mais discreta) e com antenas mercantis num sem-número de países, tanto na Europa como na América do Sul (como é patentemente o caso da Proteste, no Brasil, seja qual for a forma que in situ revista ou assuma).
Trata-se de uma subversão autêntica do convencional modelo associativo dominado por um Ideal prosseguido através de estruturas institucionais cujo escopo se aparta do egoístico (em que a persecução do lucro é o leit motiv…), em que não há, em rigor, associados, antes assinantes de revista (s) arregimentados através de perniciosas (e condenáveis) estratégias mercadológicas (persistentes, assediantes acções de marketing directo) que, ainda que denunciadas, em geral, são marcadas por uma intolerável impunidade.
A excepção que bem pode servir de espelho de virtudes aos Estados-nação em que um tal equívoco tende a grassar com graves consequências para o modelo associativo convencional (e que é susceptível de esvaziar o movimento associativo do que lhe é próprio e dos princípios e valores que lhe subjazem) é a que a CODACONS (COORDENADORIA DAS ASSOCIAÇÕES PARA A PROTEÇÃO DO AMBIENTE E DOS DIREITOS DE USUÁRIOS E CONSUMIDORES) * (nota), associação italiana de direito privado sediada em Roma, deu, em tempos, nota, através de um comunicado que reza o que segue:
(nota) A CODACONS é uma associação de consumidores inscrita na lista de associações de consumidores e usuários, que representa a nível nacional, de acordo com o Artigo 137, do Decreto-Lei 206/05 (Código de Consumo) e Decreto do Ministério da Indústria de 15 de maio de 2000 e, como tal, componente do CNCU Conselho Nacional de Consumidores e Usuários, possuindo legitimidade para atuar na tutela dos interesses coletivos, com base no processo especial, conforme artigos 139 e 140 do referido Decreto).
É, outrossim, O.N.L.U.S. - Organização sem fins lucrativos de utilidade social -, de acordo com o Decreto-Lei 460/97, Associação de Voluntariado reconhecida conforme Lei 266/91 e Associação de Proteção Ambiental reconhecida conforme Lei l 349/86.)
“Subordinado ao dever legal e de acordo com o Artigo 1o da Lei n.º 281/98, atualmente artigo 2.o do Código de Consumo (Decreto-Lei 206/05), que obriga a fornecer informações corretas ao consumidor, devemos comunicar o que segue:
A entidade conhecida como Comité para a Defesa do Consumidor - ALTROCONSUMO, com sede à Via Valassina 22, Milão, foi objeto de decisão judicial definitiva, prolatada em 15 de fevereiro de 2006, pelo Supremo Juiz Administrativo do Conselho de Estado, cujo julgamento 611 (pode ser consultado em www.giustizia-amministrativa.it), pelas razões explicitadas no comunicado à imprensa anexo, sustentou a anulação do Decreto do Diretor-Geral da Administração de Harmonização do Mercado e Proteção do Consumidor (um departamento do Ministério Italiano de Atividades Produtivas), datado de 28 de novembro de 2002, pelo qual a referida entidade foi acrescentada à lista de associações reconhecidas pelo artigo 5.o da Lei n.o 281/98 (atualmente artigo 137, Decreto-Lei 206/05).
Como consequência da referida sentença, essa entidade não deverá e não poderá mais ser chamada de associação conforme definido na lei retromencionada.
De facto, foi provado que essa entidade é sustentada por empresas lucrativas italianas e estrangeiras.
Essa entidade deve também ser removida de quaisquer órgãos italianos ou estrangeiros nos quais tenha sido admitida como uma organização sem fins lucrativos para a defesa dos consumidores e, portanto, também das organizações internacionais de consumidores.
Portanto, os destinatários do presente ficam obrigados a comunicar por ocasião de qualquer citação de atividade, pesquisa ou teste de produto executado pela ALTROCONSUMO que, retroativamente a 2002, ela não se encontra na lista pertinente ao Artigo 5.o da Lei 281/98 (atualmente 137 do Código do Consumo, Decreto-Lei n.º 206/05) e nas diretivas europeias que a ela se refiram.”
Com efeito, esta modelar decisão do Consiglio dello Statto italiano (Conselho de Estado, à semelhança do francês Conseil d’ État ou do Supremo Tribunal Administrativo português) põe termo a um equívoco que perpassa por outros países ainda, como a Bélgica, de onde é oriundo um tal molde (em que protagonista principal é a Test-Achat), a França, a Espanha (OCU – Organização de Consumidores y Usuários), Portugal (Deco-Proteste, Limitada, e Deco-Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor) em que os planos pretensamente associativos e os objectivos marcantemente mercantis das sociedades comerciais se cruzam e confundem e se espraiam pela comunidade como se fora uma associação de consumidores autêntica, autónoma e genuína, quando na realidade é de uma firma comercial que se trata e cujo objecto é o da comercialização de um sem-número de publicações (revistas) como a Dinheiro & Direitos, a Proteste (testes comparativos), Teste Saúde, Poupança Quinze, Invest…, numa profusão de títulos que nenhuma associação de consumidores, honestamente criada, jamais se permitiria por razões de franca economia, éticas e de transparência.
As associações de consumidores vazadas em modelos convencionais – e assentes numa concepção que tem por cerne o Ideal que o não o Material – dispõem de um só veículo – uma revista susceptível de tudo abarcar, mesmo nos países mais desenvolvidos e nas mais prósperas das associações porque suportadas pelos seus filiados de raiz e pelos serviços que prestam eventualmente a terceiros, numa base de manifesto desinteresse material.
As associações de consumidores autênticas, autónomas e genuínas não adoptam métodos negociais desleais, como as estratégias mercadológicas que tais empresas desenvolvem e de que se nutrem, em autêntica contrariedade à lei, com comunicações não solicitadas à revelia do que as normas, em geral, prescrevem, com o recurso permanente ao spam - ilicitamente desencadeado - por meio de mala postal electrónica.
As ilegalidades que se acumulam desmesuradamente não são perseguidas pelas autoridades que detêm atribuições e competências neste particular. Em especial em Portugal e em Espanha, para não referir o mais.
Para além do que se consigna nos passos precedentes, registe-se que os jornais nos dão, por vezes, conta de promiscuidades sem par em processos de mascaramento ou encapotamento que de todo importa denunciar.
Atente-se no que o PÚBLICO, na sua edição de 24 de Julho de 2006, em fundado artigo da autoria do jornalista José António Cerejo, revela a tal propósito:
“Presidente da Altroconsumo dirige a Deco-Proteste há um ano
Número um da organização italiana é o principal representante da Euroconsumers na sociedade que edita as revistas dedicadas à defesa do consumidor em Portugal
O presidente da Altroconsumo, a organização de consumidores transalpina que o supremo tribunal administrativo de Roma excluiu há meses da lista das associação de consumidores italianos, desempenha desde o Verão do ano passado as funções de presidente da Deco Proteste Ld.ª, a editora da Pro Teste e das outras revistas ligadas à Deco.
Paolo Martinelli, além de presidir à Altroconsumo, pertence também aos conselhos de administração da Euroconsumers SA - a empresa luxemburguesa que detém 75 por cento do capital da Deco Proteste (cabendo o restante à Deco, Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor) - e de duas editoras italianas controladas pela Euroconsumers.
A circunstância de Martinelli acumular a direcção da Altroconsumo com a administração destas editoras, que são detidas num caso a cem por cento e noutro a 70 por cento pela Euroconsumers SA e editam revistas congéneres da portuguesa Pro Teste, constituiu o fundamento do acórdão que retirou àquela organização a capacidade legal de representar consumidores e o direito de receber apoios do Estado italiano (ver PÚBLICO de 20/7/2006).
No caso da Deco Proteste, que até ao princípio do ano passado tinha o nome de Edideco, o advogado italiano substituiu Maria Lídia Barreiros, que representava a Euroconsumers SA na administração da empresa, juntamente com três administradores belgas daquela sociedade.
A Euroconsumers SA é uma sociedade luxemburguesa cujo capital era maioritariamente detido, até há pouco, pela associação de consumidores belga Test-Achats e por uma cooperativa homónima, participando também no capital duas das editoras controladas pela sociedade em Itália e em Espanha e um antigo dirigente da união dos consumidores luxemburgueses (três por cento).”
Situações do jaez destas não são nem prestigiantes para estes conglomerados empresariais em que os desvirtuamentos imperam, nem salutares para o movimento autêntico de consumidores em que se propalam ainda os princípios na sua pureza original, já que os deliberados equívocos que tendem a gerar-se visam ludibriar os consumidores, enredando-os em processos nada transparentes de que são, afinal, as principais vítimas neste jogo de espelhos em que ninguém se reconhece, afinal.
Mais grave é que as associações, pretensamente de escopo altruístico, nem sequer tenham filiados, antes considerem como associados seus os assinantes de revistas de empresas transnacionais em que detêm, quando muito, uma quota na participação social que, no caso português, ascende a 25%.
A mais que isso, o embuste decorrente do facto insólito de cunharem uma empresa transnacional de escopo egoístico, uma sociedade anónima multinacional, como associação sem fins lucrativos, o que constitui um inaudito atestado de estupidez passado aos cidadãos-consumidores em geral e, em particular, aos que são enredados no processo que os levam a subscrever as revistas da entidade multinacional, como consta, aliás, de uma afirmação feita ao jornalista José António Cerejo, do PÚBLICO, periódico editado em Lisboa:
“Quanto à Euroconsumers, qualificou-a [o secretário-geral da pretensa associação de consumidores, a Deco] como "uma ASBL" (associação sem fim lucrativo) - embora seja de facto uma sociedade anónima - e disse que não há qualquer repartição de lucros.
"Revertem para uma fundação que os orienta para o movimento associativo."
De acordo com as últimas contas depositadas na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, a Deco Proteste, Ld.ª, obteve em 2003 um lucro líquido de um milhão e 811 mil euros.”
Não há elementos actuais disponíveis acerca dos impressionantes lucros de uma tal empresa, mas a pretensa associação assevera que tem para cima de 420 000 “associados” (dados de Fevereiro de 2014 revelados ao Diário de Notícias, de Lisboa (as aspas são de nossa exclusiva responsabilidade), o que, a ser verdade, levaria a que esse número assinalável de assinantes de revista ou revistas sobrepujasse o que de mais relevante se conhece no seio da mídia na Europa (não se ignore que o PSOE - Partido Socialista Operário Espanhol - dispõe de 198 000 associados, num universo de cerca de 45 000 000 de habitantes, conforme dados revelados na edição electrónica de 12 de Julho de 2014 pelo jornal El País, de Madrid).
O facto de entidades empresariais (que deliberadamente se confundem com associações de escopo não egoístico) estarem eventualmente isentas de impostos constitui uma forma de evasão fiscal, que não pode de nenhum modo tolerar-se. A mais que isso, não se consente que recebam eventuais subvenções do Estado sejam quais forem as actividades a que se destinem.
E que estejam legitimadas, como ocorre em Portugal, como titulares da acção popular, por exemplo, como sucede entre nós, quando a lei expressamente o veda, tal como se pode conferir ao transcrever-se o artigo 3.º da Lei da Acção Popular (Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto):
“
Art.º 3.º
Legitimidade activa das associações e fundações
Constituem requisitos da legitimidade activa das associações e fundações:
a) A personalidade jurídica;
b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate;
c) Não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.”
E, no entanto, não raro aí está o “braço” associativo da empresa (ou a “associação”, detentora de títulos de uma empresa mercantil editorial) a demandar os seus concorrentes ou outros que no mercado violam alegadamente a lei… em detrimento do consumidor!
Ademais, o que a empresa desenvolve, em termos nem sempre transparentes, como actividade mercantil, surge nos media(na mídia) imputado à associação, do que lhe advém um acréscimo de exposição, de notoriedade em detrimento das associações autênticas, autónomas e genuínas que desenvolvem no mercado de consumo as suas actividades e que são assim ofuscadas na sua acção, desacreditando-se, quer porque os níveis de intervenção são inferiores a esse cúmulo empresa + ”associação” quer porque o Estado as segrega da partilha dos dinheiros de um Fundo (constituído não por dinheiros dos contribuintes, mas dos consumidores que não reclamaram as cauções depositadas nos serviços públicos essenciais no momento da celebração dos contratos de fornecimento respectivos).
Daí que este conúbio associação/empresa e/ou empresa/associação, densificado pelo emprego comum de um “petit nom” , adoptado, de resto, no giro comercial de uma delas, seja, para além de ilegal, algo que caberia ao Ministério Público, como garante da legalidade, contrariar mediante as competentes acções judiciais, factor de um ludíbrio permanente da comunidade de consumidores, que nem sequer é respeitada por uma “entidade” que supõe ser una (uma e uma só) e que entende estar ao seu serviço, de modo directo ou reflexo.
Parece curial que um tal modelo seja de proscrever como de deplorar que advogados haja que “arvoram” os seus escritórios mal sucedidos em “associações” para tirarem vantagem da ignorância dos consumidores e se locupletarem à custa alheia e em detrimento dos interesses reais e autênticos das vítimas do mercado, duplamente vítimas na circunstância.
O pretenso modelo, a que a Europa mal reage (mas que serve “pour épater les bourgeois”, para iludir os “parolos”, os “papalvos”, como se diz em bom português e para exportar para a América Latina…) não pode ser saudado como um figurino de propor ou de recomendar.
Pelo contrário, há que convocar as autoridades a que incumbe a salvaguarda da legalidade para que estes embustes, estes artifícios e estas associações-fantasma sejam denunciados, desmascarados e clarificadas as situações: a cada um o seu espaço, empresas com empresas, associações no universo próprio do tecido associativo sem subversão dos fins nem corrupção dos meios.
Até para se respeitar em plenitude o estatuto do consumidor e a sua sacrossanta carta de direitos.
No mais, a abjecta exploração dos consumidores por pretensas associações que se dizem ao seu serviço só reforça a repugnância que situações do jaez destas provocam nas pessoas mais esclarecidas e críticas que reagem com veemência à forma como tais “instituições” desconsideram todos os que enredam na sua execrável trama porque tecida de vis indignidades.
A esta vilania há que reagir de forma enérgica, assumindo os cidadãos-consumidores as atitudes consentâneas que o continuado logro - que da Europa transpõe fronteiras para a América do Sul e para África – exige, reclama instantemente!
O desafio que neste particular se consubstancia é o de se pugnar incessantemente, no terreno, contra esta confusão conceitual de associações/empresas e de empresas/associações, geradora de inestimáveis prejuízos, em que se enredam os consumidores na sua inocência, candura, ingenuidade, marcante boa-fé…
A mais feroz recusa, a mais inflamada rejeição a “este” engenhoso “modelo” que considera os consumidores como rematados “papalvos”… a quem parece lícito “vender gato por lebre” também aqui!
Força é escorraçar os “vendilhões do templo”.
Haja um Cristo de chibata em punho que se disponha a escorraçá-los, passe a aparente e vaga justaposição a uma qualquer intervenção panfletária em artigo com o estilo e a configuração deste.
Uma lei das associações neste passo recortadas é algo de imprescindível para frear ab ovo estas artificiais construções em detrimento dos consumidores e das associações que se reclamem de genuinidade e de estrita observância ao Ideário em que se revêem os seus membros fundadores e os mais que se lhes juntem.
A exposição no pelourinho público e o tratamento adequado a tais “associações” - eis o que se exige para estes malandrins que zombam da ingenuidade dos mais e colhem vantagens acrescidas do seu sórdido labor!